terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Quim

1

Colocar o desespero para trabalhar a meu favor. Esse era meu novo objetivo. Examinada de perto, a situação era mesmo gravíssima; mas isso não seria mais problema nenhum: afinal de contas, a partir dessa minha nova lógica, quanto pior a situação, melhor. Essa visão revolucionária de mundo dependia da minha capacidade de inverter as polaridades de todos os pequenos aspectos e mínimos detalhes da vida. Uma por uma, eu havia de virar todas aquelas cartas de mau-agouro, revelando nos reversos uma fortuna sorridente e um caminho iluminado entre as pedras.
Meu nome é Joaquim. Se quiseres me chamar de Quim, não reclamo - mas acho que para essas intimidades, primeiro devias pagar-me um chope no garotinho. Mas continuo: meu nome é Quim, e depois de dar uma busca e apreensão em todos os meus bolsos, gavetas e cantinhos em geral eu cheguei à impressionante quantia de sete reais e vinte centavos. E no dia seguinte seria Natal.

*

O rótulo da garrafa me hipnotizava. O conhaque de alcatrão São João da Barra é famoso pelos refrões insistentes nas transmissões do futebol pelo rádio. Nunca gostei do sabor, e as ressacas que ele proporciona são brabas como as famosas rebordosas dos vaqueiros do velho oeste que eu tanto adorava nos livretos da infância.
Aventuras que o jornaleiro, seu Manuel, deixava que lesse - desde que não os marcasse com mão suja, ou os esgarçasse abrindo as páginas em demasia. Manuel ensinou-me a manusear um livro com cuidado, com carinho. Era d’o Porto, e acreditava piamente na leitura como alavanca do progresso: costumava dizer que quem não lê “já está fodido de saída”. Eu lia e lia - atento à advertência - sentado no banco de concreto ao lado da banca: o bem vencia o mal com um revólver numa mão e uma dose de gim na outra... [Mas toda leitura não me tirou da linha de fogo da vida.]
...A velha tia Camila, encurvada e pálida, ensinou o pouco francês que era possível naquela turma semi-alfabetizada. O sucesso era sempre a canção Alouette, que ela era obrigada a deixar-nos cantar toda aula. – Je te eplumerait ton cou - e tome gargalhada dos moleques! Ela era nossa vizinha, e quando morreu acabei herdando sua coleção de romances melosos, bobalhões, no entanto bem construídos - em suma viciantes - e aprendi o francês na marra, meio escondido, aflito que eu pudesse ser apanhado lendo sobre as escapadelas da condessa se Y, as insaciáveis amantes do abade de W...
Quando meu pai açougueiro descobriu que eu era melhor com as mesóclises do que desossando um porco, e que preferia a companhia de Casimiro de Abreu à de meus irmãos e irmãs, sacou o cinto de couro cheio de disposição e alegria. Futuro do subjuntivo, para ele, curava-se na base da porrada. Oh! Que saudades que tenho/Da aurora da minha vida... No cu, pardal! Minha infância era um inferno temperado por fugazes leituras à luz fria dos postes de iluminação pública...


2

O sol às duas da tarde amolecia o asfalto de um trecho da Joaquim Silva que, à força de inúmeras e sucessivas reformas e recapeamentos, mais parecia uma colcha de retalhos acinzentados e desbotados. Periquito, sentado no meio fio, espetava a massa amolecida com um palito de madeira que apanhara do chão, e que ainda guardava alguns fiapos do salsichão da véspera. O menino enfiava e puxava o palito, formando pequenas ondulações concêntricas no pavimento a partir do umbilicus mundi, que ele eriçava com seu eixo. Periquito tinha fome, mas não pensava no assunto. Chorar de fome é coisa de menina.
Larica atravessou a rua com ar de desprezo. Ela afetava detestar o irmão mais novo - nada mais natural, afinal, os problemas começaram na família por volta da época que ele nasceu. A primogênita costumava dizer que o jovem Ezequiel era um filho de Urubu Baleado: apelido que ela tentava fazer colar, mas que não colava. O menino Ezequiel das Chagas Silva já nascera com o amor desmedido pelos periquitos do avô, espremidos em gaiolinhas penduradas do lado de fora do barraco multicor, espremido este por sua vez nas profundezas de uma ruela do bairro da Saúde.
(Se eu tivesse perguntado o que Periquito queria de Natal, tenho certeza que respondia: “um saco de alpiste para alegrar a passarada do Vô”. Mas eu não perguntei, é claro – sete reais e vinte centavos não pagam sequer uma imitação de Ceia de Natal, que dirá presentes.)
A magrela Larica continuou, com os olhos rasos d’água, o seu caminho rua acima rumo à feira-livre na Conde de Lajes, para espremer uma xepa, tentar arranjar algo pra tapear o vazio no estômago. Do alto da sua pré-adolescência, ela não tinha vergonha de chorar de fome. Nem eu.

3

É difícil dizer quando começou minha queda rumo à sarjeta. Enquanto lecionava para as crianças do município a vida seguia medíocre, porém honrada. Fácil é lembrar quando a demissão veio – foi nos idos de 1994 - mas não tão fácil identificar o anterior ponto de virada no qual a vida embicou para o caos.
(No inverno de 94, o cometa Shoemaker Levi chocou-se com o planeta Júpiter numa hecatombe cósmica, mais potente que milhões e milhões de Hiroximas; o Brasil voltou a erguer a Copa do Mundo, comandado pelo mais odiado dos sete anões; e eu quase fiquei rico - mas a égua Fredegunda quebrou a pata na reta final do Grande prêmio Onze de Julho, chocando o Hipódromo da Gávea e destruindo minhas esperanças de ser um apostador bem-sucedido - pois há quem seja, e não são poucos. Porque não posso ser um deles? - perguntei-me sem obter resposta. Fredegunda foi sacrificada naquela mesma noite, pelo veterinário que fez seu parto, e meu sonho de grandeza hípica morreu com ela.) O conhaque de alcatrão São João da Barra é uma bebida forte, ruim pra burro, dose pra leão, mas é também um bálsamo do esquecimento; quanta coisa ruim ele apagou da minha vida...
Das memórias confusas que esse período me deixou, uma nunca se esvaeceu: Larica (ainda a criança Maria das Neves) pequenina, pequerrucha mesmo, perguntando com uma voz chorosa: Pai, a mamãe morreu?

*

O que dizer da mãe de família que dá no pé? Duma mamãe que puxa o barco, canta pra subir, sai fora, chega nessa – em suma, da meretriz obscena que abandona marido e filhos pequenos? Provavelmente o mesmo que diríamos de um pai fujão desses tão comuns por aqui. O nome dela não será mencionado, pois merece o esquecimento – embora tenha insistido em reaparecer na história.

*

Um par de setes é uma mão ridícula - e pôquer é um jogo do diabo. Qualquer um com metade de um cérebro operante pedia mesa e entubava o prejuízo. Mas não eu, eu precisava perder tudo e mais um pouco antes de recobrar a consciência. Tudo mesmo, incluindo dinheiro do aluguel, o da passagem e mesmo a roupa do corpo.
O olhar assustado do pequeno Ezequiel na primeira noite que dormimos ao relento é outro detalhe que lobotomia nenhuma vai apagar de minha consciência culpada.

4

Era preciso conviver com aquela malta de maltrapilhos - com visual rastafari ou hippie, vendendo bugigangas e artesanato, cheirando cola, fumando maconha, bebendo cachaça, fedendo todos eles como gambás. Cada vagabundo, mendigo, imigrante ou desabrigado, uma colônia de pulgas e piolhos. Todos se reproduzindo como coelhos: crescei e multiplicai a sua miséria parecia ser o único mandamento seguido à risca.
E a inesgotável pivetada? Todos tirando a maior onda de morador de rua, quando a gente sabia muito bem que muitos tinham casa em Parada de Lucas ou Honório Gurgel... Cada moleque desses é um retrato de um lar partido, fraturado. Era de tirar o fôlego, e fazer até mesmo com que a gente se esquecesse dos próprios problemas.

*

Eu tentava sem muito sucesso manter a minha família minimamente unida em meio às baganas e as ratazanas. Sim, morávamos na rua, mas ainda nos lembrávamos do nosso último banho, e nunca deixávamos de tomar um quando a situação se oferecia.
Pois foi no potente chuveiro do bar do Amaral (gentileza e cortesia do garçom Josué), saboreando a alegria perdida da higiene pessoal, que a revelação se fez; uma clareza de raciocínio que garantia: o desespero é meu único aliado.

*

A salvação me encontrou deitado em estado comatoso sob os arcos da Lapa. Abri os olhos: o turista francês disse bonjour, e apontou a teleobjetiva de sua Leika para mim. Mesmo acordando, eu consegui murmurar Allons Efants de La Patrie/Le jour de gloir est arrivée; enquanto exibia ao diafragma de sua máquina a minha pobre verga. Mon nom est Quim, Bo-Te-Quim! Eu berrei com voz empastelada enquanto urinava na direção dele. Mas o cara era enviado do santíssimo; pois largou a máquina, cheio de uma boa vontade digna de frade capuchinho para alguém que acabara de quase ser aspergido pela urina de Le miserable.
(Duzentos reais para ele era merda, mas me colocava de pé, num pequeno quartinho perto do passeio público – bem, um depósito, na verdade: no terceiro andar de um sobrado ocupado. Pagar aluguel a invasor: esse é o retrato do Rio. Era um lixo, mas eu tinha saído da sarjeta, sem a mínima intenção de voltar.)
*

O bigodão gaulês era ameaçador, contrastando naquele rosto bonachão. Explico para ele meu problema básico: transformar o desespero em vantagem, fazer, em suma, com que trabalhe a meu favor. Na parede do restaurante uma pequena placa verde oferecia em caracteres brancos Punheta de Bacalhau à Alentejana. Meu redentor falava português com sotaque lusitano e levava um mês para completar cada frase.
- O desespero é o vinagre produzido a partir do suave vinho da esperança; portanto quem nunca adoçou os lábios nesse néctar nunca há de amargar o vinho acre do desespero...
- Muito bem dito – acenei ao garçom incrédulo para que servisse o terceiro chope e adoçasse de vez meus lábios, antes que o gringo cansasse de pregar e pagar. Percebi na hora que o cara era um professor de alguma coisa. Nós nos reconhecemos pelo tom pomposo com que recitamos os velhos autores – assim, como se fossem pérolas que urdimos de improviso.
- Quem desespera com um evento é um covarde...
- (meu silêncio magoado foi afogado em chope da Brahma)
- Mas por outro lado, aquele que tem esperança pela condição humana é um tolo!
- Concordo com a segunda parte!

5

Morando (nos escondendo) no depósito, duzentas pratas renderam bastante. O Natal chegou ainda a tempo de enfatizar a inutilidade dos meus sete últimos reais. Larica e Periquito pressentiram o fim da bonança, a proximidade da tempestade – e cada um, à sua maneira, foi procurando se virar o melhor que podia. Já aprenderam rápido que não devem depender do pai para muita coisa.

*

A escadaria do Convento de Santa Teresa já é famosa - mundo afora - pela maravilhosa cobertura de ladrilhos em mosaicos, executada pelo chileno Selarón. Quando ele acaba, recomeça a trabalhar naquele colorido lance de escadas.
Se essa rua, se essa rua fosse minha/ eu mandava, eu mandava ladrilhar... Periquito conhece cada desenho daqueles em detalhes, pois fica sentado nos degraus por horas a fio como quem lê um longo e interessante livro. Tão imóvel e concentrado fica o garoto nessas contemplações, que já aconteceu de assustar muita gente, como se fora uma aparição. Um bêbado chegou mesmo a rolar uns cinco degraus praguejando contra o canhoto.
Neste dia em especial, ele observava uma silhueta de gestante africana recortada em negro contra um fundo amarelo e vermelho. Aquilo parece querer dizer alguma coisa, algo muito pessoal, algo especialmente relevante para ele. Mas o pequeno Ezequiel não consegue decifrar exatamente o quê. Com o palito ele esburaca um pequeno canteiro onde uma flor fenecia no calor sufocante. Em outros lugares da cidade, era Natal.

*

O sujeito chega de Minas Gerais com uma mão na frente e outra atrás, achando que por aqui ele vai faturar um montão de artistas de TV, mas é claro que não vai: então ele tem a idéia errada – violentar uma mulher, qualquer uma, de preferência alguma bem novinha. Aí, depois de provar do fruto roubado, nada mais o satisfaz.
O nome dele era Kleberson, ou Cleidson, alguma imitação de nome gringo dessas que os semi-analfabetos mineiros tanto adoram. Eu é que não vou apurar o nome certo, pois ele não merece. O prego limpava a unha do dedão do pé com um canivete de camelô Made in China onde a bandeira de suíça havia sido impressa com as cores invertidas.

6

Primeira providência para bancar meu desespero: subi o morro. A missão era conseguir uma ferramenta adequada. Sim, um cano, trabuco, uma peça, um oitão, um pau-de-fogo. E não é que o gerente da boca era meu ex-aluno? Costumava ser Flavinho, agora era conhecido como Navalha. Tive que cheirar várias carreiras e tomar várias cervejas no decorrer de toda uma tarde. Sempre atento para não chamá-lo de Flavinho.
Ao saber que o mestre ia andar trepado por aí, com intenções criminosas, a reação do rapaz foi de puro júbilo. Ele me conseguiu um revólver por cento e cinqüenta reais, e ainda por cima ele deixava que eu fizesse um test-drive. Empenhei minha palavra de que - no mais tardar - em uma semana apareceria por lá para saldar a dívida. Minha palavra era o suficiente para ele. Agradeci meu bem sucedido pupilo e desci com cuidado para não dançar com os homens da lei logo de primeira.

*

Kleberson (ou seria Deividson?) nem viu o que o atingiu; o berro que ele deu foi a parte mais assustadora para Larica, muito mais do que o estupro em andamento. Ela se recompôs como pode e saiu correndo escada acima, enquanto o prego tombou, bermuda arriada, barraca armada, sangrando pelo rabo ainda espetado pelo palito escurecido. Foge, Periquito - ela gritou; e realmente o invisível espectro vingador também não tinha ficado para conferir, descendo a colorida escadaria como quem voava.

7

Copacabana tem quem goste, mas é longe demais, é gente demais, e pra chegar até a princesinha do mar só esbarrando em dragões da maldade e santos guerreiros.
(As gravuras nas paredes e tetos dos restaurantes da minha infância: Netuno e uma hierarquia de serias e tritões e peixes, peixes, baleias e tubarões; as estátuas de São Jorge e da Virgem, e de Iemanjá, as lojas de artigos de umbanda, cada açougue, boteco, padaria, lavanderia, cada loja com seu santo de proteção; o bloco “Boca Seca” com suas camisetas onde bocarras se abriam num esgar terrível; o pavilhão nacional tremulando no forte do Leme, imponente, inalcançável.)
*
Minha primeira presa foi um senhor caquético, saindo do banco todo satisfeito. Que covardia, nem precisava de arma para isso! Quase oitenta reais, sendo que dez em moedas de cinqüenta centavos. Com capital de giro, podia passar ao verdadeiro jogo.

*

Turista sueca é das coisas mais lindas que há. Até quando é feia é bonita. Se todo mundo por lá for mesmo bonito e saudável assim, eu não entendo porque sentiam a necessidade de viajar meio mundo para vir terminar aqui, na Avenida Atlântica, servindo de cobaia para meu primeiro assalto à mão armada.
Enquanto eu destilava francês e imitação de inglês ela me olhava nos olhos com intensidade. Era forte como um touro, saudável, um pouco gordinha pro meu gosto, mas elegante a não mais poder.
Gottemburgo é um saco, me garantia, e um pouco de lixo na rua não mata ninguém.
Numa escura rua lateral eu segurei o seu braço para dar o bote. Mas ela entendeu tudo errado, e ofereceu o rosto alvo e os lábios nórdicos. Não tinha tido mulher desde que aquela meretriz me havia deixado, e era presa fácil para uma dona bonitona dessas. Aquela carta virada revelou uma dama de ouros.

*

Gerda abriu os olhos. Estava revirando a bolsa dela, mas não me assustei, e, aliás, nem ela; mostrou o corpo nu e me convidou num gesto. Mostrei o revólver num sinal para que ficasse quieta, e ela sorriu. Larguei meus afazeres e deitei. Eu a maltratei um pouco, mas ela gostava, adorava, e logo voltava a dormir. Que tipo de mulher se apaixona por assaltante? Merda de síndrome de Estocolmo!

*

Larica e Periquito estavam dormindo abraçados sob a marquise da faculdade. Achavam o nosso depósito ainda mais assustador do que a rua. Acordaram felizes de me ver, assustados pela presença da loura. Não deixei que fizessem perguntas, fomos direto para o hotel mais caro em que jamais colocamos o pé. Antes de chegarmos, fiz com que vestissem camisetas bem simples, mas limpas. Bermudas jeans e havaianas igualmente imaculadas foram outra providência. Logo ficamos com uma cara de gente de bem, mas ainda assim o olhar dos funcionários nos detectou como corpos estranhos. Ela me registrou na portaria como seu fiancé e a partir deste momento nunca mais fomos hostilizados pela equipe do Hotel.

8

Nós que somos criaturas do impulso somos também criaturas do desespero. Agüentar aquela gringa doida era demais pro meu visual. A primeira vez que ela pediu pra transar de quatro com a arma (carregada!) apontada pra sua cabeça, eu confesso: até achei legal. Mas ela queria todo dia. É claro que a essa altura ela só me chama de Quim.

*

Subi a ladeira, desconfiado. Minha intenção era realizar meu pagamento em dia. Mas Navalha havia tirado a carta maligna. Morreu baleado, e outra facção dominava a boca. A mãe de Flavinho tinha mudado com o resto da família para Niterói.

*

É incrível a velocidade com que Gerda consegue passaporte para toda a família. Um bom despachante e recursos ilimitados fazem milagres. Os jovens Ezequiel e Maria das Neves parecem resignados - mais do que animados - com a viagem para a Suécia. Eles se apegaram a Gerda de maneira admirável. Isso é bom, muito bom.

*

A meretriz abandonou os filhos, o marido, mudou pra algum lugar e nós nunca ficamos sabendo qual, mas ao que parece tinha ótimos informantes. Enquanto estávamos embaixo da ponte ela não mostrou o focinho, mas bastou passarmos uma semana nababescamente para ela aparecer sem avisar, acompanhada de um advogado de porta de cadeia. Isso na véspera de nossa viagem!

*

Mais uma carta sinistra para virar. Negociei de maneira afável e totalmente mentirosa uma pensão substancial para a mãe fujona, e marquei uma nova reunião para dois dias depois. O juizado de menores foi outra aporrinhação incrível que só mesmo a moeda forte pode desenrolar.

*

No portão de embarque Larica empacou e não quis ir. Periquito abraçou a irmã mais velha e os dois andaram sem olhar pra trás. Gerda ainda arriscou um tchauzinho com sua mão gordinha. Nunca mais vi nenhum deles.


9

O advogado suava embaixo dos braços, feliz com aquela batalha ganha com tão pouco esforço. A meretriz estava desconfiada: é lógico que eram amantes. Na hora de efetuar o pagamento, saquei meu novo instrumento de trabalho e atirei três vezes em cada um deles. Minha mira era muito ruim: ela até morreu a caminho do hospital, mas ele escapou com vida e mudou pro Amapá. Confesso que aquela noite dormi um sono agitado.

*

Aproveitei então para visitar Kleberson (Jefferson?) na enfermaria do hospital. Levei uma caixa de bombons de presente, mas ele não podia comer. Antes de sair desferi quatro tiros, todos na cabeça, afinal de pertinho não era assim tão difícil, com um alvo tão dócil e imóvel. Dessa vez foi mais natural, vi que era uma coisa dessas com a qual a gente se acostuma: o chato não foi matar um cara jovem, cheio de falsas esperanças. O chato é que agora eu estava sem balas, e foi o maior problemão para arrumar mais munição.
No telefone Periquito segurou o choro, valente. Ele disse que gostava da nova vida, dos amigos, e disse também que por lá o governo manda a polícia na sua casa se você não escovar os dentes. Larica não podia falar, tinha saído com o namorado. Eu me despedi dizendo que ia ligar em breve, mas ele sabia bem que era mentira.

*

Colocar o desespero para trabalhar a meu favor. Essa é minha missão de vida. Meu nome é Joaquim. Se quiseres me chamar de Quim, já sabes, não reclamo - mas acho que para essas intimidades, primeiro devias pagar-me um chope no garotinho.

Rio de Janeiro, 22 de Janeiro de 2008.