sexta-feira, 6 de julho de 2007

Laranja-sangue.

Mors Janua Vitae


Sábado – 9 da manhã. Cai uma chuva fina.

Quando Sid percebe que o ônibus vai bater, não dá tempo para mais nada. Segura na barra de alumínio do banco da frente e espera o impacto. O Grajaú-Leblon acerta em cheio o caminhão de frutas. Pessoas caem pelo corredor, gritos misturados ao retorcer de madeira e metal, o espatifar de vidros quebrados. O ônibus e o caminhão enganchados vão parar num muro de pedra. Com o segundo impacto, o gancho que prendia o perdurucalho do vendedor ambulante escorrega do corrimão no alto do ônibus, e cai sobre Sid, uma árvore de natal coberta de balas e chocolates. O gancho pontiagudo perfura seu pescoço bem na altura da artéria e ele cai – como que fisgado por um anzol – para debaixo da roleta.
Deitado no chão, ele sente ainda os dedos formigarem. Tenho que chegar ao ateliê, tenho que pintar... Embora sinta dor, sua atenção está na poça que se formou, mistura de seu sangue vermelho com o conteúdo do vidro de pigmento amarelo que quebrou com o impacto. A cor resultante é um laranja-sangue que é exatamente perfeito...

As pessoas adoram parar e olhar os acidentes. Querem uma confirmação: não fui eu que morri ali.


24 horas antes. Um pátio interno na Glória.

Ninguém conhece a cidade por inteiro. Mesmo que algum alucinado conheça todas as suas ruas, mesmo assim não conheceria tudo, longe disso! Precisaria também conhecer tudo o que existe por trás da muralha de prédios que delineiam as artérias de circulação da cidade. Os miolos dos quarteirões, por assim dizer. Esses são mundos secretos, accessíveis às janelas dos fundos dos edifícios: muitas vezes vãos obscuros, onde pontas de cigarros e imundices são iluminadas por uma luz oblíqua.
É num pátio interno que Sid vai se encontrar com Mônica. Andando pela rua, é só um quarteirão cinzento numa rua secundária do decadente bairro da Glória. Mas passado o portão de madeira, eis que surge um pátio espanhol cheio de plantas e bancos de madeira. Quatro prédios baixos debruçam suas janelas dos fundos para o pátio, como olhos negros nas brancas paredes.
São nove da manhã, e Sid detesta acordar cedo. Mas no outono, a maneira com que a luz matinal incide sobre esse pátio é magnífica. Então, para fazer os esboços preliminares das pinturas de Mônica, ele acordou cedo. Um pequeno sacrifício que faz em nome da arte. Ele não está passando muito bem, sofrendo as dores de uma cirrose hepática, causada pela bebida e principalmente pela inalação da terebentina que usa como solvente nas pinturas a óleo - um grande sacrifício que faz em nome da arte.
Mônica mora lá no metro-goldwin-Meier, portanto um atraso de meia-hora não vale nem a pena discutir. Depois de chegar afobada ela coloca uma ponta de seu cabelo moreno na boca e dispara:
- Eu não vou dar pra você assim, não.
- E quem falou em dar, menina? Hoje eu vou desenhar você.
- Todo mundo sabe que você come as meninas.
- Desenhar. Vou desenhar você. – E já está rabiscando.
- Não vem com essa que eu não sou tão novinha assim.
- Escuta, querida, fecha a boquinha um pouco, se não eu não consigo capturar toda essa sua beleza mal-humorada.
- Todo mundo sabe que você pinta mulher pelada. O que eu estou fazendo aqui toda vestida?
- Quem é esse todo mundo que sabe tanto sobre mim?
- Eu não nasci ontem.
- Os primeiros encontros com as modelos são sempre em lugares como esse. A luz aqui é ótima, e aqui as pessoas normalmente ficam menos defendidas, mais à vontade. Assim eu posso entender o seu rosto, seu corpo, postura, suas expressões faciais, tudo isso...
E por uns cinco minutos Mônica relaxa e Sid pode esboçar um semblante mais sorridente. Mas ela não se agüenta quieta.
- Não é que eu não queira, entendeu? Eu preciso do dinheiro. Quando é que você vai me pintar?
- Amanhã...
- Hoje. Tem que ser hoje.
- Se você está precisando do dinheiro, eu posso adiantar.
- Você é muito legal, mas tem que ser hoje. Amanhã eu posso mudar de idéia.
Sid fecha o caderno e larga o lápis. - Qual é o problema?
- Meu namorado é capaz de matar se souber que eu fiz isso.
- Posar nua?
- Isso. E dar para você.

Apartamento de térreo no Horto.

A enorme reprodução do auto-retrato em Saint Remy 1890 domina a parede oposta às janelas. Sid está em pé, misturando as tintas em sua mesa multicolorida; o chão cheio de folhas amareladas que o vento traz do quintal.
- Os olhos de Vincent Van Gogh me perturbam e me fascinam. Eles falam comigo - eles falam com a humanidade: Você acha que tem problemas? Em toda minha curta vida, só vendi um quadro. Vivi na miséria, me envenenei com as tintas, enlouqueci. Fui traído por um amigo, cortei a orelha para presentear a rameira que ele roubou de mim. As gralhas na plantação me atormentam. Dei um tiro de espingarda na testa, e agonizei dois dias inteiros antes de morrer.
Mônica está largada num sofá, com um copo de vinho pendendo displicente da mão. Doida para tirar a roupa. Sid conversa, adia.
- Eu trabalho com um marchand da tradicional família Koch. Ele tem um gosto convencional que comunica bem com o paulistano endinheirado médio. Conseguiu mesmo encaixar um quadro meu numa galeria em Lisboa. Furreca, mas uma galeria européia, não menos! Neste exato momento, do outro lado do Atlântico, tem um turista japonês tirando uma foto do meu quadro.
- Uma mulher pelada.
- Naturalmente.

Depois que ela se foi.

Sid pinta nus porque eles vendem. Sua real paixão é pintar peixes. Um tipo de natureza morta pós-moderna que ninguém compra - mórbidos e inquietantes. Ele escolhe o pescado na peixaria, às cinco da manhã, e faz com que lhe entreguem em casa. Ele não gosta muito do cheiro de peixe. Ficar cheirando a peixe é um sacrifício que não estou disposto a fazer em nome da arte.
Agora é ele que está nu, pintando o trisotropis microlepis e tentando esquecer as coxas de Mônica. Ela cheirava muito melhor. Mas ele sabe, intui que a sua verdadeira vocação está ali naquele badejo morto, fresco, de olhos vidrados. Quanto a Mônica, sente que falhou. Não no sexo, mas na pintura. Talvez ela seja bonita demais, gostosa demais, talvez ela seja verdadeira demais para caber numa pintura dele. Com certeza tantos outros pintores darão conta daquela mulher. Ao menos aquele badejo atlântico é um objeto à sua altura.

Meia noite – hora aberta.

Coisas terríveis acontecem à meia noite. Ele sente as mãos formigarem. Sabe que está inspirado - é uma sensação inebriante, ele anda leve, pisando em nuvens. Sabe também que a sensação, que pode durar umas 48 horas, deixa em seu rastro uma depressão de igual duração. Se isso é hormonal, psicológico ou conjunção dos astros celestes, Sid não saberia dizer.
O telefone celular toca. É o namorado de Mônica. Ele é um sujeito sem meias palavras. O recado é simples, enunciado repetidamente e aos berros: eu vou te matar, filho-da-puta.

Tânatos é filho da noite e irmão do sono. Arisco, insensível e impiedoso. Traz um ser humano entre as mandíbulas.

Sábado, nove e meia da manhã. Ambulância em alta velocidade.

A cidade é mesmo linda vista de uma maca. Comamos e bebamos que amanhã morreremos! Ensinar a morrer é também ensinar a viver - morrer só porque não se pode evitar é muito triste. Tenho que manter viva na memória aquela cor – sim - dos olhos vidrados do badejo atlântico, os olhos severos de Vincent Van Gogh.



Na chegada ao hospital, uma altercação. É o namorado de Mônica, armado e perigoso. Ainda bem que você ainda está vivo - assim eu não preciso assassinar um cadáver. O amante traído é preso em flagrante pela PM, ostentando um sorriso de vingança. Sid morre fisgado como o peixe, baleado como Van Gogh – banhado em laranja-sangue e sonhando com a beleza escondida em um pátio interno.

Rio de Janeiro, 7 de dezembro de 2005.
Paulo Serran