quarta-feira, 11 de julho de 2007

A EXTENSÃO IRREGULAR DE VIDA
1
Um doutor Fisher sorridente abriu a porta para o senhor grisalho que entrava. Tinha mesmo motivo para sorrir, cento e cinqüenta dólares por consulta. Conduziu-o ao divã enquanto dava uma espiada na ficha preenchida pela eficiente secretária. MacCarthur, adido comercial da embaixada britânica. Oitenta e cinco anos.
- Queira recostar-se Senhor MacCarthur...
O ancião, do divã, olha para Fisher com dois olhos muito fundos emoldurados por uma cabeleira branca.
- Minha religião não permite que eu minta para padres ou médicos. Na verdade me chamo Sebastopoulos. MacCarthur é o nome desta minha, como direi? Encarnação...
O velhote é uma noz”, pensou Fisher, chegado numa tradução literal. Mas não parecia perigoso, apesar de ser certamente anglo-saxão e não parecer nada grego. De qualquer maneira o botão de emergência permanecia confortavelmente perto de seu pé direito, sob a mesa.
- Bem, senhor... Sebastopoulos, o que posso fazer para ajudá-lo?
- É uma longa história e começa em 1935. O senhor conhece bem História?
- Bem, sabe como é... a quantidade de informações técnicas para absorver... - tal resposta lhe valeu um olhar de reprovação daquele que Fisher considerava agora uma noz histórica. Ele adorava as histórias dos malucos, das nozes. “Por que outro motivo eu teria essa profissão?”, se perguntava ele. Ninguém respondia. Era um tanto noz ele também.
- O fato é que, como até o senhor deve saber, em 35 Mussolini invadiu a Etiópia, país africano vizinho das colônias italianas da Eritréia e da Somália. No seu Intento de restaurar o Império Romano ele aproveitava para devolver o vexame.
- Vexame?
- Sim, pois como o senhor certamente não sabe, o exército italiano tinha sido batido pelo Etíope na única vitória de um exército africano sobre um europeu.
- Sei, mas o senhor é grego, não? Não consigo entender a relação.
- Sim, sou grego. Era grego. Dá na mesma, O importante é que após trabalhar como garçom, estivador, marinheiro e outras coisas, fui trabalhar como mercenário nas tropas italianas. Pagava bem, e era trabalho razoavelmente fácil. O Duce reuniu duzentos e cinqüenta mil homens e equipamento pesado. Os etíopes eram mal armados, alguns usando lanças e mosquetes velhos, sem nada parecido com força aérea. Além disso, fazíamos farto uso de um gás venenoso proibido pela Liga das Nações...
- Em suma, um massacre... - Fisher ria por dentro. Diplomata inglês. Mercenário grego fascista. Tem de tudo. Além disso, que diabo de Liga das Nações?
- E logo na primeira batalha foi que eu vi o Marabú.
- Quem é esse? Etíope?
- É um pássaro. Um carniceiro com um paladar peculiar, pois apesar de voar mais alto que todos, era só um dos feridos se deitar, que lá vinham os Marabús, mais rápidos que todas as outras aves, mordiscar o sujeito ainda vivo. E para mim aquilo tinha uma aura de beleza terrível, pelo menos no primeiro momento. Só o que eu via eram mortos etíopes. E os Marabús, vertendo a morte em vida...
- Faz sentido - comentário imbecil, mas é só o que consegue dizer. Algo na estória começa a o incomodar.
- Mas eis que sou mandado comandar os negros do nosso lado, e ainda chamavam Isso de promoção. O que é um galão no ombro quando se está em guerra? Fique sabendo que das cinco mil baixas do Duce na campanha, três mil e quinhentas foram de eritreus e somalis... O fato é que sem adversários a força aérea italiana voava descansada... Descanso. Foi o nome do vinho que um certo piloto camisa negra tomou,
- Camisa negra... - aquilo não soava bem para Fisher,
- Era apenas um vôo de correio, o avião nem carregava bombas nem nada... só que embalado pelo descanso ele vê aquela porção de negros embaixo, nem pensa duas vezes e já executa um rasante descarregando sua metralhadora,..
- Não eram etíopes, era a sua companhia. Fogo amigo...
Agora não estava sendo imbecil. Estava sendo óbvio.
- Exatamente, Uma rajada dilacerou completamente minha perna direita - disse o velho enquanto batia numa perna direita absolutamente normal.
Aquilo revoltou completamente o estômago de Fisher, sua cabeça latejava nas têmporas.
- A sua hora acabou... - o velho parecia não ouvir, mas antes estalou os dedos esmigalhando ervas exóticas com odor intoxicante e tirou do bolso uma pequena ampulheta onde escorria uma areia fina de um vermelho muito vivo, O olhar de Fisher é atraído para o objeto e tudo em sua mente como que se anuvia.
- Amputaram minha perna... - continuou o velho - fiquei uma semana em coma e tive alucinações e delírios febris. Ora via o Marabú, altivo e terrível, vertendo morte em vida, ora via o pássaro voando com a minha perna no bico... Relembrei momentos de minha vida, mas um em especial... Foi no meu tempo de Marinha Mercante, era um trabalho duro... Salvei uma vez a vida de outro marinheiro. Ele era búlgaro ou quem sabe romeno, não tinha certeza. Ele falava oito línguas, todas mal, tinha fama de falador. Quando se viu em débito comigo, disse que Ia me contar um segredo, uma canção...
- Sua hora acabou - repetiu Fisher, mas sua voz era um mero assobiar entre os dentes enquanto tudo que via era a areia que escorria e eventualmente vislumbrava nela asas que batiam.
Ele cantou, e cantando me contou que eu podia enganar a morte.., verter morte em vida... Ocupar outros corpos... e eu, voltando do sonho, me deparei como jovem MacCarthur, idealista enfermeiro da Cruz Vermelha... e logo ele era eu, pois a canção fez com que eu tomasse seu corpo...
Fisher sentiu um calafrio percorrer-lhe o corpo e verificou aterrorizado que não conseguia se mexer. A areia escorria...
- Abri os olhos e eu via como ele, era ele.., com um grito de terror a alma dele saltou para o vácuo. Agora é a sua vez.., estou velho e preciso de uma nova morada para minha alma.., assim, com as mãos lavadas pela confissão, verto a morte em vida e tomo seu corpo...
A última coisa que Fisher viu foi o velho levantar cantando e dançando e partir para cima dele. Com um espasmo seu pé apertou o botão de emergência no chão e ele desmaiou.

2

Os olhos de Tânia começavam a arder por causa das lentes de contato azuis. O elevador parou no décimo primeiro andar (que era o último) e três homens de terno entraram. Um deles era o senhor Gallo, da sala 1125, logo Tânia foi se preparando para ouvir um gracejo. Aquele cara jovem precocemente envelhecido sempre gracejava. Quando Tânia no mês anterior tingiu os cabelos, ele veio com um “ah agora somos louras”. Era o tipo de cara que parecia achar que o pagamento do condomínio daquele edifício comercial lhe facultava o direito de mexer eventualmente com a ascensorista. Fora isso, é claro, era um mistério. Ninguém parecia saber nada sobre ele. Exceto Tânia. “Afinal tenho minhas fontes”, pensava ela. Ele era uruguaio e trabalhava com exportação. Pelo menos foi o que Ciro disse, e ele era garçom do restaurante aonde o Sr. Gallo ia todo fim de tarde tomar um caro conhaque que fora uma descoberta arqueológica na última prateleira. Ciro era namorado de Tânia. Ele gostava de lente de contato azul.

A porta do elevador se abriu no térreo e todos saíram. Gallo não disse nada. Parecia preocupado. Saiu com passos vagamente nervosos.
E estava mesmo nervoso, pois carregava em seu bolso um telegrama. E nesse apenas uma expressão - Galo de briga.

Conhaque. Gallo já bebia agora o terceiro. Ciro, o garçom namorado/informante de Tânia previa uma gorjeta gorda.
Hábitos. Tomo sempre conhaque aqui neste bar. É certo que a mesa é estratégica e vigia a entrada, que minha atenção é total e que minha Lugger não falha. Mas é fato. Eu venho sempre aqui. Quinze anos atrás, do outro lado do Atlântico, estaria morto. Amoleci com essa vida mansa. Mas agora devo sacudir o torpor e caçar um morto vivo”.
Gallo amassou o telegrama e guardou no bolso. Ciro viu aquilo e deduziu problemas com o fisco. ‘Caiu na malha fina”. Estava equivocado, é claro. Mas não sabia muito menos sobre Gallo do que muitas pessoas que tinham “fontes” bem melhores que Tânia. Como Ciro, muitos especulavam sobre sua origem: russo, israelense, líbio, búlgaro e até brasileiro. Gallo tinha o que ele mesmo chamava de “sotaque perfeito”, que justificava todas as versões. Seus próprios atuais empregadores sabiam muito pouco sobre ele. Sua ficha na AGENCIA é ridiculamente sumária: “egresso de serviço secreto oriental não especificado. Quinze anos no Brasil. Há dois anos repassa INFO e recruta agentes para AGÊNCIA”.
Mas mesmo sabendo tão pouco, eles sabiam que ele era o único na América latina com cancha para deter uma extensão ilegal de vida. Para deter um morto vivo, um invasor de corpos. Um vampiro.
Por um preço. Trezentos e cinqüenta mil euros ou quinhentos mil dólares americanos. Isso, somado às suas não poucas economias, seria suficiente para uma bela aposentadoria. Pensava nisso enquanto pagava a conta deixando ótima gorjeta para Ciro (Às vezes ele previa certo).

Gallo pega um táxi para casa, onde (ele sabia) o esperavam um gargarejo infernal, duas pedras semipreciosas e um propósito irredutível.

3

No telefone:
- Tem certeza mesmo de que está bem? - inquire a eficiente secretária.
- Tenho... - Respondeu Fisher, mas sua voz traia momentos de inédito falsete.
- Então como combinado eu passo por aí às onze...
- 0K... - Sebastopoulos (agora ele era Fisher) tinha planejado uma rápida fuga com todo o dinheiro, cartões e valores que pudesse carregar na pick-up do médico, mas ele não contava com a secretária...
Desligou o telefone e foi tomar um banho. Em sua lembrança o momento fatídico... Pulara sobre Fisher, e ao tocar-lhe penetrara em sua mente. Os seguranças chegaram rápido (quase rápido demais) e encontraram a dantesca cena: Fisher dando um urro de dor, e os dois caídos no chão. Maccarthur é levantado morto. Mas Sebastopoulos vivia!
O urro de dor era a alma de Fisher saltando para o vácuo... ele mesmo ainda sentia a dor. Mas a batalha fora breve e fácil. Depois de medicado, “o doutor” foi levado para a casa. A eficiência da secretária adiara o seu depoimento na delegacia para dali a dois dias quando já estaria em Roma ou Acapulco.
Andar com o novo corpo. “Agora sei como se sente uma múmia...”
A imprecisão dos movimentos. “Tenho que domesticar este corpo.” Durante o banho canta uma canção de sua terra natal, enquanto faz flexões de joelho. Já arrumado descongela algo e come com prazer. "É um bom corpo. Vai durar uns trinta e cinco anos, no mínimo"...

4

No prédio onde Gallo morava e mantinha sua safe house não havia ascensorista nem elevador. O apartamento era amplo, com um pequeno quintal, mas decorado quase exageradamente de maneira convencional.
Mas em se transpondo a porta do quartinho dos fundos, o mundo era outro. Um telefone/secretária eletrônica/fax, um computador pessoal, um aparelho de rádio escuta e um enorme armário de aço. Três paredes são cobertas por mapas e quarta por uma abarrotada estante com livros sobre mitologia, filologia, magia, física, química, história, folclore, fabricação de venenos, joias famosas, crimes célebres, plantas exóticas - em todos os idiomas e encadernações imagináveis.
Gallo sentou-se e ouviu os recados, entre eles um borrão sonoro em todas as freqüências que ele chama de gargarejo infernal. Conecta o telefone ao computador, chamando um programa anti-scrambler. Tira um pendrive de dentro do armário de aço: é a chave com a qual o computador vai filtrar as freqüências indesejáveis. Quinze minutos depois a mensagem era clara. Sebastopoulos-Maccarthur-Fisher no Rio. Bom, Era um morto vivo de terceira geração, razoavelmente recente, portanto, tendo em vista que existem no mundo inteligências migrando em corpos desde a época dos reis-lagartos.
O recado recomendava ataque imediato o que era mau, mas dois telefonemas para as pessoas certas certificaram Gallo de que “Fisher” dormiria em casa. Decidiu agir durante a madrugada.
É o momento da concentração. Do armário de aço tirou um cordão de prata mithril com uma turmalina melancia verde e rosa. Coloca o cordão no pescoço e aninha a pedra contra o peito. Pensou em sua vida. Infância, maturidade velhice, morte. A maneira que é. Como deve ser. O corpo para a Terra. Pago o que devia, seria comida de vermes. A alma endereçada quem sabe para onde. Pensou no eterno sofrimento de uma alma expulsa no vácuo. Chorou um pouco. Lavou o rosto e tirou o cordão, acometido de um propósito irredutível.
Todo sentimentalismo posto de lado. Coloca em sua mão direita o anel de ametista por sua alma, o ultravioleta do espectro... Agiria agora como uma força da natureza, inexorável e desapaixonadamente.

Vestiu um terno preto e um colete à prova de balas. Sua Lugger, abastecida de balas de prata com cianureto, que matam instantaneamente. Protegido assim contra táticas humanas e sobre-humanas, partiu.

5

Sehastopoulos nem viu o que o acertou, O pequinês da secretária poderia ter quebrado a surpresa, mas tinha sido trancado noutro quarto. Estranhamente tinha estranhado Fisher, de quem normalmente gostava.
Um tiro no peito e outro na cabeça. Morreu dormindo, após “eficiente” porém rápida atuação. As detonações acordaram a secretária que em pânico gritava como pássaro agonizante. O pequinês no outro quarto aproveitou o embalo e latiu como se todos os ossos do mundo dependessem disso.
Gallo saiu rápido, mas sem demasiada pressa - pois chamaria atenção. Menos de um minuto se passou desde que entrou no apartamento. Fácil e rápido, não fossem os efeitos colaterais...

6

Ciro serviu o oitavo conhaque incrédulo. Nunca o vira beber assim antes. Ainda mais depois de uma semana sumido, “Deve ser o fisco”. Notou que Gallo usava um estranho anel que não parava de afagar.
O anel. O ultravioleta do espectro, a alma. Foram sete dias e noites de febre, atormentado pelo fantasma de Sebastopoulos e por uma ave que não conhecia - um urubu maldito ou coisa que o valha. Mas salvou sua alma, por causa do anel.
Refeito, fora ao escritório apanharas coisas importantes, e de novo não notara a lente azul de Tânia. Aposentadoria. Era sé no que pensava. Havia, entretanto, mais do que simplesmente a febre. Começava a perceber as semelhanças suas com o morto-vivo (agora morto-morto). Também Gallo “morrera” e inventara para si outra vida do outro lado do Atlântico. E tinha mais. Todo o papo de “extensão irregular de vida”, ele sabia que os motivos para que ele fosse contratado para matá-lo eram outros. MacCarthur sabia demais.
Ele também sabia demais, e iria se aposentar. Eles permitiriam? Ou o matariam? (“Podem no máximo tentar”, pensava ele). Ele sabia que aquela morte tinha a ver com o tráfico de grãos para um banco de sementes europeu. Mas isso é assunto para outra história.

Publicado originalmente na coletânea:
“Epifânia Beija o Sapo”- Editora Diadorim, 1994