terça-feira, 21 de agosto de 2007

PISANTE ARTILHEIRO

Uma história real.

Da primeira vez ele até contou a coisa da maneira que ela aconteceu. Mas nas versões subseqüentes, como era de seu feitio, Chiclete começou e embelezar os fatos, e – pior – a cada vez que contava a história, mais ele se colocava no centro dos acontecimentos. Não tivesse eu polidamente chamado a sua atenção para esse fato, acredito que rápido chegaria o dia em que Chiclete contaria ter ele feito o gol de bicicleta, não eu. Então acho que não custa nada botar a coisa no papel, com calma, em detalhes, para que o leitor não tenha que se contentar com a versão cascateada do meu nobre camarada.
É preciso entender, com uma boa dose de boa vontade – Chiclete foi o único entre os muitos amigos que chegou a jogar futebol profissionalmente. É bem verdade que era futsal, na Espanha. Para os nossos padrões de pelada, era talentoso com a bola no pé, mas mascarado e francamente ineficiente, fominha de bola. Na nossa galera tinha gente com mais domínio de bola, com mais potência no chute, com mais capacidade de marcação, com mais velocidade e arranque. Ainda assim vale o registro: ele foi o único futebolista profissional entre nós. Nem por isso, no entanto, foi o autor deste golaço de bicicleta no campão de terra da Lagoa, bem em frente ao Piraquê – bem em frente a mais de quinze amigos, no último segundo da partida – no dentro ou fora. Mas também, não era Chiclete que calçava o pisante artilheiro. Era eu.

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Primeiro de tudo – quase ninguém tinha nome nesse time, apenas apelidos: um time da Lopes Quintas dos bons tempos sairia jogando com Queimadão no Gol, a defesa formaria com Neném, Feibis, Piuí e Zé Milico, o meio campo com Galo, Negão e Cuquinha, o ataque podia trazer o Vela e a mim, que não tinha propriamente um apelido então virava Paul.
Chiclete tinha vaga no time, mas não sempre, esperava a "de–fora" como qualquer um. Na verdade, craque mesmo era o Marcinho Ciroba, engenheiro e ambientalista, jogador mais importante (most valued player) da Faculdade americana onde fez pós-graduação. Sim, soccer amador americano é uma teta - eu imagino - mas quem sabe dizer o que é o futsal espanhol? Não eu.
Nos dias em que eu jogava realmente bem – poucos – Piuí não se continha, e me celebrava me espinafrando, dizendo que assim eu ia ser contratado pelo Vitória de Setúbal!– Eu que me orgulho de minha origem ibéricas não caía na pilha, confesso que adorava. Pois foi o Piuí que inventou essa estória de pisante artilheiro.

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Nunca fui um moleque fashion, acredito mesmo que o termo nem fosse usado correntemente na minha época. Se um dia você esbarrasse comigo usando camisa de botão com short adidas, deixa pra lá, eu era assim mesmo. E foi nesse sentido que um top-sider de camurça azul terminou se transformando em minha opção preferencial de calçado futebolístico. Usava o que estivesse no pé na hora em que a pelada formava. E esse sapato tinha um formato na parte dianteira que tornava excelente para chutes de peito de pé, e era duro o suficiente para eventuais bicos na bola. Pra quem jogou futebol com pedra no lugar de bola, como nós fazíamos no Divina Providência, isso era o de menos.
Se no primeiro dia todo mundo fez questão de sacanear o maluco que estragava sapato jogando bola, nos dias que se seguiram o Piuí chamou a atenção do respeitável público sobre o aumento do meu rendimento nas últimas peladas, aumento que ele não creditava aos meus titânicos esforços – que nada – mas antes ao estranho sapato: é o pisante artilheiro.
O pisante, o Vitória de Setúbal, tudo isso fazia parte do folclore do Piuí. Folclore que ele ia atualizando jogo a jogo, lance a lance. Era um bom jogador, na verdade - junto com os irmãos Toni e Alexandre Borba, fazíamos uma linha que em certos dias se mostrou simplesmente imbatível. Monopolizando o campo da pracinha, derrotando Cuquinha, João Maluco, João Piranha e tantos outros. Invictos todo um fim de semana na Fazenda da Paz, mesmo enfrentando futebolistas em melhor forma atlética, como o Mauro Frejat.
Pois foi num dourado dia teresopolitano desses que o Piuí cruzou uma bola alta demais, e piorou a emenda com o soneto, gritando: Bicicleta! Pulei sem pensar, isolei a bola no rio, e quase quebrei o pescoço. Imaginem só a festa que Piuí fez: não falaria em outra coisa por semanas. Minha bicicleta seria mais um item do extenso folclore. Seria, mas não por muito tempo.

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A pelada já estava para acabar, e o time que jogaria depois já estava adornando as traves com brancas redes, luxo que nosso time nunca sonhou em ter. Então ficou convencionado entre as equipes - aos berros - que era dentro ou fora. Ou seja, quando a bola sair de campo, ou entrar no gol, a partida acaba. Isso tinha lá sua importância, uma vez que o jogo estava empatado. O Piuí deu um bico pro alto e a bola veio quadrada, repicando nos buracos do barro irregular. Apertado pela marcação, só consegui rebater a bola para cima com a cabeça. Foi quando ouvi o grito: bicicleta! Dessa vez eu estava com o pisante artilheiro e peguei de jeito. A bola descreveu uma parábola, e encobriu o Negão (hoje em dia conhecido como Didil) que era um bom goleiro. Ele catou borboletas, mas não achou nada. A bola caiu no ângulo – frrrrrrr – estufando gentilmente a recém-colocada rede. Fim de jogo. Começo de lenda.

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Da primeira vez Chiclete até que contou a estória de maneira fidedigna, embora o ponto da questão para ele fosse ridicularizar os esforços do Negão ao tentar tirar a bola do gol. Eu me lembro bem porque ri às pampas, não fosse o Negão meu amigo mais antigo do JB e o cara que me aplicou dezessete balõezinhos em seqüência numa certa tarde de 1976, no playground do meu prédio.

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Chope no Calamares, anos após o incidente. Piuí pergunta sobre o pisante artilheiro, eu explico que se arrebentou todo numa pelada no Maconhão, aquele campo na saída do Rebouças. Chiclete começa a contar a estória do gol de bicicleta – desta vez o resultado de um cruzamento preciso dele mesmo, após uma jogada fenomenal! Eu rio e não desmascaro a versão, sabedor que ele nada teve a ver com o lance, estava no outro time, na defesa, apenas viu a bola entrando de perto e os apuros do Negão. Deixa o cara, eu penso, afinal já faz tanto tempo.

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Ensaio do Suvaco do Cristo, uma década após o evento. Nonagésima cerveja na mente, no meio da zoeira, Chiclete repete aos berros pela enésima vez a estória. Desta vez, ele diz que pulou para executar a bicicleta, mas eu pulei logo antes e fiz o gol, não tão bonito quanto o dele, mas afinal não sou nenhum profissional. Eu sou obrigado a intervir, igualmente berrando, e dizer que assim não dá! Ano que vem ele vai acabar contando que quem fez o gol foi ele. Ele ri, mas insiste na sua versão, então sou obrigado a rememorar tudo, nos mais mínimos detalhes – pois de nada esqueci – e apoiado pela memória reaquecida dos outros presentes ele se rende aos fatos.
Mas só Deus sabe o que ele anda dizendo nos dias em que eu não me encontro por perto. A essa altura, já nem consto mais como participante do jogo, minha memória foi deletada daquele momento dourado do futebol amador carioca, fui apagado da foto como uma vítima de expurgo stalinista, obliterado em nome de uma nota de pé de página na carreira de um jogador de quinta categoria.

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Nossas peladas juvenis também se foram, no encalço do pisante artilheiro. Transformaram-se numa oportunidade semanal para sair na porrada; numa reunião de gente barriguda e estressada, num mero objetivo aeróbico, numa chatice e numa inutilidade. Tudo que sobreviveu disso tudo foi o folclore entre os poucos que ainda se conservam amigos, aqueles que não morreram, aqueles que a vida não obteve êxito em espalhar pelo mundo.


Rio de Janeiro, 21 de Janeiro de 2006.
em memória de Alexandre Fajardo, vulgo Zé Milico.

3 comentários:

Unknown disse...

Muito bom Paulo!

Não lembro se eu estava nesse dia, mas recordo perfeitamente do "pisante artilheiro", sendo inclusive, um dos críticos àquela inovação. Realmente seu desempenho com o top-sider parecia melhorar muito, sem deixar de lembrar que o único ponto fraco do calçado em questão era a sola, lisa como casca de banana, o que te levava ao chão em vacas homéricas ocasionalmente, principalmente no piso encerado do Divina.

Parabéns pela estória!

Abração,
Julio.

marko damiani disse...

Craque é craque, mesmo sem pisante artilheiro continua metendo gol de bicicleta. Pena que eu não tava lá naquele dia... Por sorte testemunhei outros gols seus, todos no ângulo. Parabéns e um fortíssimo abraço!!!

Leonardo Villa-Forte disse...

Pior que esse tipo de gente existe, é foda esses caras que querem puxar para si a glória dos outros.

Gostei muito da estória e das frases finais, "gente que a vida não teve êxito em espalhar pelo mundo".
Muito bom, Paulo, parabébs!

Abraços,
Leo